terça-feira, 31 de agosto de 2010

O meu Cinema Paradiso

"Helena é destemida..." Esta frase dita por um de nosso amigos sempre ecoou em minha mente.  Porém por mais que ecoasse, nunca acreditava nela. Helena parecia muito frágil em suas atitudes, meio indecisa. Claro que isso era uma percepção distorcida de minha parte, pois seus admiradores a sufocavam tanto, com tantos mimos, que aquele sufocamento também afetava a mim. E estes admiradores iam desde sua família, passando por parentes mais próximos, amigos de última hora e outros mais distantes de Helena e por último, eu. Verdade, eu sempre imaginei ser  o último em suas prioridades, apesar de parecermos muito um com o outro. Ela, assim como eu, não  apreciava mauricinhos que não sabiam nem lavar um prato, mas que se preocupavam com o derretimento das calotas polares; e também não levava em consideração as patricinhas que destilavam sua 'tristeza do mundo' por terem suas mães esquecido de levá-las para esta ou aquela festa - isso porque suas mães estavam entretidas com seus namorados.

Helena gostava de fazer tricô, o que escandalizava suas amigas. "Como alguém com mente aberta pode fazer isso, meu Deus?". Outras  - as patricinhas progressistas - diziam que a mulher contemporânea não poderia se sujeitar a estes ícones da submissão feminina. Os mauricinhos que a rodeavam constantemente viam isso com condescendência, visando um bote mais adiante. "Sabe, adoro garotas que revivem hábitos antigos, distantes dessa nossa realidade egoísta e consumista, você é especial por isso...". Helena parecia alheia a tudo isso, porém não demonstrava, fosse por incapacidade ou por conveniência, afinal não era todo mundo que tinha tantos admiradores ao seu redor.

Eu não dava palpites sobre sua vida por mais que a conhecesse, apesar de ela sempre insistir pedindo minha opinião sobre determinados assuntos. Ela sempre teve boas idéias a meu respeito, mas como já disse, como ela as defenderia nesta tormenta de afagos sociais que a rondava? De vez em quando ela tinha disposição de compartilhar seus momentos a sós comigo, de uma forma especial - ela gostava que a levasse ao cinema. E ir ao cinema com Helena era uma atividade que eu gostava muito. Ela gostava de comentar o enredo, os possíveis finais diferentes do que eram apresentados nos desfechos, gostava de fazer comparações com as tramas reais com as dos filmes. E eu adorava tudo isso, porque ela fazia estas coisas somente comigo, ela me confessou uma vez.

Um dia fomos ao cinema e Helena reclamou que as legendas do filme estavam borradas. Sugeri que nós fôssemos sentar mais adiante, nas primeiras filas para enxergar melhor - meio que a  contragosto, pois sempre sentávamos do meio para trás. No fim da sessão, Helena me confessou que  sentia  estar perdendo a visão. Aquilo foi um choque para mim, mais do que para ela. Helena consultou especialistas e um diagnóstico sombrio foi dado: em pouco tempo ela perderia a visão, se não total, parcialmente. Um sentimento coletivo de medo se apoderou de todos, de sua família, de seus amigos. Mas o mais interessante é que o medo não se apoderou de Helena como era de se supor.

Um dia enquanto estávamos a sós e sua cegueira já tinha avançado, Helena me disse que gostaria de passar a eternidade ao meu lado. Eu que nunca fiz projetos e planos numa extensão maior do que um semestre fiquei confuso; como suportar a infelicidade de minha amiga nesta nova fase? Não que eu visse esta infelicidade em sua nova condição e nas limitações que a doença causou, mas a via na minha incapacidade de ser um auxílio, alguém útil para alguém que sempre confiou em mim mais do que nos outros...eu pensei que não aguentaria.

Helena entretanto teve paciência comigo e pedia sempre para acompanhá-la em determinados lugares. Porém o lugar onde nos sentíamos bem e felizes era, ironicamente, no cinema. Sim, o cinema no qual ela não poderia ir, por não ser possível ver as tramas, o colorido das cenas, o batom das atrizes, as cores das camisas dos galãs, apenas trilhas sonoras e as falas dos personagens. Então um dia  ela sugeriu que eu fosse seu intérprete de cenas, descrevendo cada ação dos filmes. Eu achei estranho a idéia, porém fui convencido por ela.  E começamos a frequentar o cinema novamente e não precisávamos mais sentar nas primeiras fileiras, ficávamos nos últimos lugares. E eu era seu intérprete fiel (bem, não tão fiel assim, às vezes eu ficava com preguiça de ir e Helena me arrastava até lá...).

Quase todo fim de semana estávamos no cinema da cidade acompanhando os mais variados  tipos de enredo, desde comédias, filmes de ação, desenhos, matinês infantis, terror. E eu sempre narrava as tramas, e não era tão bom narrador assim, por vezes me perdia na história, mas Helena sempre paciente comigo chorava, sorria, se assustava com sua imaginação alimentada por minhas palavras. "O Stuart Little está agora sendo capturado por um gavião malvado", dizia eu e Helena comentava "Coitadinho dele, coitado do ratinho!". Em outra sessão eu narrava: "O horroroso George Clooney está correndo como um tonto pela rua" e aí Helena me dava um beliscão por causa daquele desaforo para com seu ídolo. Noutra eu narrava: "A minha  Penélope Cruz está maravilhosamente  tomando café da manhã..." e levava outro beliscão, sempre no braço direito. "O Steve Martin ficou apenas de cueca..." narrava eu, e Helena ria e ficava sem ar de tanto rir. De todos os tipos de filmes, o que eu mais gostava era dos de terror, não por causa do gênero, que nunca gostei de assistir, mas porque Helena sempre se agarrava ao meu braço em cenas aterroziantes. "O Drácula está se preparando para sugar o sangue da mocinha", dizia eu. E Helena apertava o meu braço cada vez mais forte. Essa Helena...sempre destemida.

domingo, 8 de agosto de 2010

E agora, José?


Me lembro dos tempos de infância, quando você trazia para nós presentes no Natal, depois de um ano letivo pesado. Lembro dos domingos que você trazia o Estadão com seus quilos e quilos de papel e eu ficava procurando ali algo para ler - os quadrinhos, uma crônica, algo que fizesse o domingo mais agradável possível. Me lembro de quando a bicicleta quebrou e você soldou uma barra de ferro para reforçar - ficou uma coisa esquisita, mas quem se importava? O importante era que ela estava ali, refeita, quase perfeita - mas pra dizer a verdade, ela estava perfeita sim, e a perfeição estava na liberdade de guiá-la onde a imaginação permitisse.

Me lembro que você tinha uma voz de barítono e gostava de cantar. Lembro que tocava violão muito mal e parecia não querer aprender direito. Me lembro do dia em que o Márcio, em sua ingenuidade infantil disse "que bom ter um pai que sabe fazer tudo, né?", referindo-se às suas habilidades de faz-tudo. Eu recordo de suas teimosias, das brigas, reconciliações. Recordo de que seu silêncio, por vezes vinha do fundo da alma, devido ao seu passado, junto com seus irmãos, de exclusão. Não deve ter sido fácil ser largado num lugar desconhecido, longe da mãe. Aquela reclusão parecia uma terapia solitária de alguém que parecia não querer incomodar ninguém com seus problemas.

Lembro que você nunca dizia o que devíamos fazer, nunca disse "faça isso que é o certo, faça aquilo que é o correto". Você ensinava pelos próprios exemplos que dava, de trabalho e dedicação, não deixando faltar o que precisávamos. E os seus exemplos, associados ao seu modo de ser e enxergar o mundo possibilitou que traçássemos nosso próprio destino de modo correto. Com imperfeições, evidente, mas correto. E lembro que mesmo na sua imperfeição, víamos um referencial de algo bom, que nos auxiliaria a caminhar por nós mesmos.

Lembro do dia que você partiu. Foi repentino, como se não quisesse que notássemos, que não nos preocupássemos. Mas ficamos tristes, pois nem pudemos relembrar todas as coisas boas e ruins que tivemos todos nós juntos. A sua partida discreta foi um resumo da sua vida discreta, de não querer ser lembrado como um número. Mas sabíamos e sabemos que você não foi um número apenas, apesar de tentarem que imaginasse isso de si mesmo. 

Neste dia, cheio de números, cada um comemora a data do seu jeito. Como você nunca deu bola para datas, apenas relembro o quanto você foi especial para todos nós, mesmo que nunca soubesse disso, ou não fizesse questão de saber. A maior herança que um pai deixa para os filhos é aquela que perdura. E a sua foi a de sinceridade e de desapego a algo que trouxesse empecilho a uma vida, se não plena, ao menos feliz. E são essas coisas que quero carregar comigo, esse ideal de se extrair felicidade, mesmo onde não haja plenitude. Uma vida plena se faz de pedaços que se colam e ao final possam indicar que valeu a pena. E para você, vejo que valeu. Gostaria de ouvir um comentário seu, daqueles descomprometidos, que você dizia sobre os mais variados temas. Porém não há mais nada a ser escrito, apenas seguido. E mesmo que em algum dia necessite recorrer aos seus ensinamentos de vida e mesmo que saiba como proceder, prazeirosamente lembrarei da pergunta, apesar de já saber a resposta: "E agora, José?"