sábado, 31 de julho de 2010

Louça acumulada

- Cara, tô me sentindo tão sozinho naquela casa!
- Há quanto tempo ela tá viajando?
- Faz uma semana. Vão ser duas fora. Pelo menos não foi a mãe dela que veio ficar este tempo aqui.
- E porque você não liga pra ela?
- Sei lá, não tinha pensado nisso ainda...
- Quais são as coisas boas que ela te traz e que você está sentindo falta?
- Que pergunta, ela é minha mulher...deve ser as coisas que toda mulher traz.
- Mas cada esposa tem um coisa diferenciada. Tente lembrar alguma coisa!
- O arroz que ela faz...
- Não cara, uma coisa que somente ela pode te trazer...arroz você come em qualquer lugar!
- Deixa ver...acho que são as esquisitices dela. Por exemplo a mania  dela  ficar no sofá penteando o cabelo desesperadamente quando quer sair. Ela faz isso e fica me olhando...tem vezes que nem percebo pois estou vendo  tevê. Não seria mais fácil ela dizer "Vamos sair hoje..."? Ela sempre tem essa mania...
- Apesar de vocês serem casados e compartilharem coisas e momentos, não deve ser muito empolgante dizer para ela  que você está com saudade de suas manias, né?
- Outra coisa de que me lembro é da pia cheia de seus cabelos...nós já brigamos algumas vezes por causa daqueles cabelos entupindo tudo!
- Não, isso não! Uma coisa que te faça querer ela bem, igual quando vocês namoravam e você ficava esperando o fim de semana para encontrar com ela. Deve ter algo... inclusive você fala tanto do cabelo dela, deve ser isso. Você deveria ligar para ela e dizer que está com saudade de seus cabelos, seu perfume que te faz sentir bem, essas coisas!
- Sei não...tô pensando aqui...
- Quer coisa mais romântica do que falar dos cabelos de uma mulher?
- Mas os cabelos de que lembro são os deixados no sofá e na pia...
- Tente lembrar outra coisa então.
- Ah! Agora lembrei!
- É de alguma parte do corpo dela, hein?
- Não!
- Algum nome carinhoso que vocês se tratam?
- Também não...
- Não desconfio o que é, fala! Se for uma coisa boa você liga para ela e diz :"Oi, estive pensando muito em você depois que lembrei de tal coisa..."
- É uma coisa  que vi e que me fez lembrar carinhosamente dela...
- Diga! Fale imaginando que  estivesse falando com ela ao telefone. Vai.
- Hum...
- Vai, fala!
- "Oi querida, estou com muita, mas muita saudade de você. E essa saudade aumentou ainda mais quando vi a pia da cozinha cheia de pratos usados hoje de tarde...volta logo...beijos!
- ............!?

segunda-feira, 19 de julho de 2010

Visão além do muro

Durante certo tempo na Santa Casa de São Paulo no ano de 1970, quatro homens dividiam um recinto daquele hospital. Dentre os quatro se destacava um que ficava o tempo todo narrando para os colegas as coisas que aconteciam no Largo do Arouche - isso porque seu leito estava ao lado da janela, a única do recinto. Ele contava tudo o que via: o movimento na floricultura com rapazes que iam comprar flores para suas namoradas, filhos que compravam flores para as mães, pessoas que queriam satisfazer com flores as pessoas queridas; contava sobre o movimento no 'Cine Arouche', como as pessoas estavam vestidas para assistir às sessões, descrevia os cartazes com os filmes exibidos, seus atores e atrizes. Narrava como estava o tempo, se ameaçava chover ou não. Como era época de Natal, descrevia as decorações da festa natalina nas lojas, os enfeites nos terraços dos prédios, crianças carregando pacotes, enfim a atmosfera de encanto que reinava ali.

Isso incomodava os outros pacientes do recinto. Alguns o xingavam de inoportuno, inconveniente, pois somente queria para si a janela com sua paisagem agradável, enquanto os outros viam apenas paredes brancas, equipamentos, agulhas, enfim um cenário nada apetecível...

Entretanto o homem não se importava com as reclamações e continuava com suas narrativas de tudo o que acontecia do lado de lá do hospital com uma riqueza de detalhes impressionante, o que irritava ainda mais os três colegas de leito.

Na noite de Natal daquele ano de 1970 o homem das descrições impressionantes e inconveniente, não resistiu e faleceu. Houve, logo após a retirada de seu corpo, o início de disputa entre os três pacientes restantes para saber qual deles iria ficar ao lado da janela e apreciar a paisagem tão bem descrita pelo homem que havia morrido há pouco.

No dia de Natal, um deles foi escolhido para ficar na janela. Mal amanheceu o dia e o homem pediu para que abrissem a janela para que pudesse apreciar o largo do Arouche e toda a paisagem rica em detalhes que havia imaginado nas narrativas do homem inconveniente. Mas então, ao abrir da janela, o homem não conseguiu ver nada a não ser um muro que impossibilitava a visão para fora do hospital. Ele intrigado perguntou ao médico responsável o que estava acontecendo:

'Este muro está aí há anos', respondeu o médico.
'Mas como então aquele paciente que morreu ontem ficava narrando o que via no Largo do Arouche?'
'Narrando o que via? Impossível isso acontecer'
'Por que?' perguntou o paciente escolhido para ficar na janela.
'Porque ele era cego', respondeu o médico, saindo do recinto.