sábado, 11 de dezembro de 2010

A menina-mulher da bolsa de brim

Lá está ela como de costume no mesmo horário de sempre. Meio-dia e meia ela sobe no ônibus, eu a observo em seu uniforme escolar - uma calça azul e uma blusa da mesma cor com a estampa 'Colégio Adventista'. Seu corpo é esguio, em tempos antigos seria chamada de sílfide, mas sua elegância não é artificial, existe harmonia entre seu rosto, seu corpo e seus gestos. Tudo nela é conforme, certamente não tem vaidade excessiva em busca de uma beleza forjada. Sua fisionomia é constantemente serena, mesmo após uma manhã cansativa de estudos, trabalhos em grupo, exames difíceis. Ela carrega em si o ar de alguém satisfeita com seus próprios méritos, sejam eles os significativos ou aqueles que trazemos conosco apenas para nossa satisfação íntima. 

Ela senta no corredor oposto ao meu com sua bolsa de brim - e esta bolsa mostra um contraste no visual da estudante. Apesar de estar no colégio  e de ser uma adolescente ainda, ela já apresenta traços de mulher. Seu cabelo é comprido e ela sempre o tem  solto. Seu olhar é uma mistura de interesse com o que ocorre ao seu redor com o encantamento daqueles que tem muito a descobrir neste mundo de sensações difusas, cenários improváveis, cenas impensáveis e roteiros reescritos; ela está sempre atenta. Durante a viagem uma surpresa - ela saca uma goma de mascar da bolsa  (que talvez a faça mais feminina do que suas colegas  em suas mochilas descontraídas) e a mastiga de modo especial. Ela parece, enquanto mastiga, compenetrada em algum tema importante. Parece descordar de algum ensinamento que traga forçado consigo,  possivelmente um tema abordado na aula de História, onde foi a ela ensinado que os perdedores são apenas figurantes no palco dos grandes vultos da humanidade. Sua face sugere que  ela discorda desta visão maquiada da História;  provavelmente ache  em suas concepções juvenis que a história da humanidade não é  escrita apenas pelos vitoriosos. Os oprimidos tem lugar especial em seus conceitos sobre a saga  humana e isso a faz vislumbrar algo novo e esperançoso.

O ônibus adentra na periferia, os problemas são mais visíveis, as carências parecem estar estampadas em esquinas, muros, nas casas de pessoas sem rosto e sem voz. Ela continua a meu lado com uma expressão agora mais serena apesar de estar segurando firme  a bolsa de brim pela alça. Já abandonou certamente os conceitos históricos, agora mais relaxada parece pensar em algo ameno, talvez no fim de semana, nas conversas com as amigas do bairro, na reunião familiar de domingo, ou pense no ócio que tanto merece após uma semana árdua de estudos.  Imagino que os esforços durante a semana não foram poucos para minha amiga colegial, ela moradora de uma região esquecida por todos, inclusive pelo Estado. Tento ainda imaginar o esforço que seus pais desempenham para manter os estudos da  filha, para que ela tenha um futuro melhor neste país onde a educação é um privilégio, quando deveria ser um direito. Sei que  minha amiga colegial não  está alheia a estas questões, certamente em suas idéias  esta problemática  é analisada frequentemente. Mas não neste instante. Ela continua serena, abstraída com a paisagem e com o sol da tarde de outono e faz planos para seu merecido descanso semanal.  Eu, ao contrário, não posso perder mais tempo; preciso descer para uma tarde de trabalho numa escola da periferia. Desço e a observo na janela. Vejo  o rosto singelo da menina-mulher da bolsa de brim, que segue adiante, assim como a vida de itinerários incertos.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

A felicidade nas águas turvas

Eu desci ao litoral para te sentir melhor; queria te tocar, tocando as águas. As águas estavam turvas e agitadas, não sabia se impróprias para banho, se tinham algas, mas também não fazia diferença - estava frio e não havia ninguém na praia. Havia um vento gelado que me fez sentir sua presença tão próxima de mim, apesar de estar tão distante. As águas, como já disse,  estavam turvas e apesar de não as ter tocado, elas mostravam estar pouco receptivas, quem sabe me sentiria mal se as tocasse. 

Mas o mal veio sem que eu te tocasse...você não respeitou a minha luta para construir algo. Para você, apenas basta um lustro no seu ego (quantos egos você tem?) para que se sinta bem. Bastam meia dúzias de palavras mal escritas para revelar e justificar as suas águas turvas...entretanto as águas turvas hoje são turvas, amanhã não. Então as águas não representam e possivelmente nunca vão representar o que você tem guardado dentro de si mesma. O que você tem é o que todo mundo tem, um coração, mas com uma diferença - ele não quer mudar. O seu é como as águas turvas, infelizes hoje e que fazem infeliz quem as desejam. Mas as águas são felizes - as águas  mudam e amanhã serão límpidas. O seu coração parece desejar para sempre ser turvo.

O seu coração turvo não basta dentro de você mesma. Ele precisa mostrar para todo mundo seu interior; mas ninguém percebe, apenas eu - desculpe a arrogância - percebo. O seu prêmio é mostrado para todos, inclusive para mim, que não tive a minha luta recompensada...a minha luta para te amar diferente. Eu não preciso justificar seu coração turvo, você parece que terá prazer em fazer isso, com suas palavras obtusas e indiferença travestidos de amor.

Eu, felizmente voltarei a ver o mar límpido, por vezes turvo. Voltarei e ficarei feliz, seja como ele estiver, não importa a estação do ano. Estarei feliz e mesmo que o vento frio que vem do mar corte minha pele, não lembrarei mais de você. Isso porque você não está no mar - ele tem vida, se renova sempre, vai e vem. Não lembrarei mais de você, pois você estará ensimesmada com seu mundo, seus prêmios, suas palavras desconexas porque você assim quis. O seu egoísmo estará no seu coração turvo, que escondido do mundo, pulsa dentro de você com o seu consentimento. O seu coração turvo com suas linhas em branco (que contradição!) que não aceitaram minha história de te fazer feliz. Apenas ficarei triste se, no futuro, seu coração ainda estiver turvo e não permitir mais nenhum raio de sol, por mais breve que seja...nenhum raio de sol...que mesmo tímido nos mostra que a vida segue o rumo e se renova, se movimenta sempre assim como as águas do mar.

sábado, 6 de novembro de 2010

Estela volta para casa

- Moça...moça...acorde!
Estela abriu os olhos de supetão contrariando sua sonolência. Viu a policial na sua frente. Não lembrava de quanto tempo estava ali dormindo sentada no ponto de ônibus. Uma senhora havia visto a moça vestida de preto e maquiagem pesada que parecia tão frágil para estar de manhã de domingo sozinha numa situação tão indefesa. Então chamou a polícia para ajudar.
- Você está bem, mocinha? perguntou a senhora.
- Estou sim, disse Estela.
- Mora aqui perto? questionou a policial. 
- Sim...sem ter noção de onde estava.

Estela levantou-se ainda um pouco sonolenta e agradeceu o apoio da policial e da senhora. Ergueu-se e tentou lembrar de como havia parado naquele ponto. Buscou na memória e descobriu que tinha saído no sábado à noite com seus amigos góticos para beber num bar do centro. Quando retornavam para casa de manhã  por ter bebido além da conta, não conseguiu seguir o grupo, ficando ali mesmo no ponto da Avenida Francisco Morato enquanto faziam baldeação de ônibus. Ninguém a esperou, ninguém dos seus amigos quis ficar ali com ela, ninguém se compadeceu de seu torpor...não esperava isso dos amigos...poderia ser assaltada, roubada ou coisa pior...Mas não queria pensar naquilo, aquele episódio poderia ser o combustível que tanto queria para fazer uma mudança em sua vida.

A garota de tantos sonhos estava ali, numa manhã de domingo com a maquiagem borrada, desalinhada, cheirando a coquetéis consumidos numa frequência tão rápida,  numa busca ansiosa por viver o que ainda não podia e talvez não desejasse. Mas não poderia ser diferente, ninguém nunca a ouviu...os pais ausentes, os problemas de família. 'Essa menina é traumatizada', disse uma vez uma das tias. Não tinha capacidade de apontar culpados, apenas de ter alguns momentos arredios de alegria de uma criança. Uma pesssoa que lhe proporcionava estes momentos era a avó Elisa - a vó Lisa como era chamada por ela, única neta.

Estela entrou no ônibus vazio; o motorista a observou de cima a baixo, o cobrador não foi tão invasivo assim, apenas passou o cartão sem levantar os olhos, ela  sentou-se no meio. Durante a viagem relembrava da infância conturbada, dos anseios, das turbulências que sua existência parecia causar na família. 'É porque ela é temporã!' dizia a avó paterna para julgar e acusar aquela pequena criatura que tinha a esperança de trazer uma pouco de alegria a um casamento que prometia ser duradouro, mas que não foi. O sol paulistano nascia já vigoroso, parecendo desafiar Estela que ainda convalescia pelos excessos; os raios batiam no vidro do ônibus de modo fosforecente. A garota deixou de lembrar um pouco da familia, começou a relembrar das brincadeiras de menina, das bonecas. O caderno de stickers, onde colava os adesivos que ganhava com ilustrações de bichinhos, personagens de desenhos animados que adorava assistir na tv. Das amigas gêmeas Talita e Priscila que iam até a sua casa para brincar; uma vez as três quiseram brincar  de maquiadoras e cabeleireiras usando sem permissão os cosméticos da mãe de Estela, o que lhe rendeu uma semana de castigo sem ver as amigas. Por fim a pena foi reduzida para dois dias, graças à intervenção da vó Lisa que defendeu a neta e as amigas, argumentando com a filha que seria injusto castigar uma amizade de uma criança tão desprovida de afeto.

Ao lembrar do episódio, Estela juntou um sorriso que parecia uma eternidade, visto os últimos tempos de vazio e busca constante por algo que a realizasse. Entristeceu-se de novo ao lembrar que chegaria e nem seria notada. A mãe, cansada de censurar a filha pelas amizades temerosas, havia largado mão e não impunha mais limites para Elisa; a garota não tinha mais horário para chegar em casa depois de ter entrado para o grupo gótico. Aquele grupo que parecia uma boa alternativa, uma válvula para refrear um certo sentimento de rejeição familiar...no começo eram afáveis e amistosos, depois a amizade foi se tornando ritual com gestos fabricados e frases desconexas. No grupo apenas sentia algo por Jean, mas não sabia se sentiria mais amor  depois de ter sido abandonada por ele e pelos amigos naquele ponto de ônibus frio como algo descartável, como uma trouxa de roupa suja.

Estela desceu do ônibus. Caminhou com esforço até sua casa. Olhou para si e para dentro de si e constatou que nada restava da garota sonhadora, que desejava apenas ser aceita não com palavras, mas com gestos, por sua família. Lembrou-se de novo da avó e do urso de pelúcia ganho quando fez dez anos - ele era tão enorme que parecia que poderia carregá-la no colo se quisesse. Batizou o urso com o nome de 'Fiel' e o tratava como um amigo, conversava com ele, afagava seu pêlo, o abraçava com sofreguidão quando queria gritar para o mundo suas aflições invisíveis para todos.

Abriu a porta de entrada  silenciosamente;  sua mãe e vó Lisa pareciam estar dormindo. Estava tão cansada que subiu para o quarto numa tentativa de dormir um pouco e depois pensar no que fazer de seu destino e sua vida. Estava decidida a largar aqueles que a largaram e retomar suas esperanças e esforços rumo a algo que valesse a pena. Sentou-se na cama, olhou para os lados. Viu Fiel no canto do quarto, quis ir abraçar o amigo de pelúcia com sofreguidão, mas o cansaço não deixou. Deitou para o lado e adormeceu. Mas em seguida acordou novamente, os pensamentos pareciam recortar sua mente tirando-lhe o sossego. Lá fora o sol já radiava desrespeitando seu sofrimento íntimo. Continuou naquela posição na cama, quando viu a porta do quarto se abrir e adentrar um vulto. Sentiu alguém sentando ao seu lado silenciosamente. Sentiu seus cabelos serem afagados de um modo diferente das outras vezes. As mãos pareciam transmitir sinceridade que geravam confiança e que geravam afeto. As mãos não pareciam se importar com o cheiro de álcool que saia de si, nem com o desalinhamento de seus cabelos, com a maquiagem exótica borrada, com a roupa negra amarrotada. Estela com muito esforço abriu os olhos e viu a mãe com um sorriso indispensável no rosto, o que a fez sentir-se dona de si como nunca havia acontecido antes.

sábado, 16 de outubro de 2010

A fada da Vila Prudente

Andréia estava amuada no quarto pensando nos problemas da última semana e nos que ainda viriam nas próximas, caso não tomasse uma atitude corajosa. De repente veio um barulho:Plec!
- Socorro! quem é você?
- Sua fada madrinha. Não é você que é a Andréia?
- Sim sou eu...fada madrinha?...mas fadas madrinhas não existem!
- Pois pode ter certeza que sim e eu sou a prova viva disso!
- Er...mas você não se parece nada com uma fada. Onde estão suas asas, sua varinha?
- Ei meu, eu sou uma fada moderna, pós new-wave! Uso celular, computador e GPS no meu cotidiano.
- É, eu reparei que você é bem moderna. Gostei do seu cabelo vermelho, combina bem com seu vestido azul e suas botas pretas. Eu sempre quis pintar meu cabelo, mas me falta  coragem.
- Porque? É fácil, é só dosar as tinturas, você pode até pintar em casa com ajuda de alguém. Se quiser eu te ensino. Eu já fui cabeleireira e também sei decorar unhas.
- Pintar unhas, que legal! Eu estou precisando mesmo dar um trato nas minhas...depois que o Marcelo me deixou eu fiquei meio apática.
- Sei...homens, tudo igual. Se quiser eu tenho umas cores aqui na bolsa.
- Obrigada, mas deixa para outro dia. Eu preciso é mesmo de outro favor...qual o seu nome mesmo?
- Vania.
- Bem vinda a Ribeirão Preto, Vania!
- Meu, aqui é bem quente, hein! Que calorão!
- Você não viu nada,  no verão é pior. Falando em cidades, você é da capital, não é?
- Sou sim, como descobriu?
- É que você gosta de falar 'meu'  a toda hora.
- É sim, isso denuncia. Eu sou da Vila Prudente.
- Vania...me diga uma coisa.
- Pode perguntar!
- Eu não quero ser intrometida...
- Pergunte!
- Eu queria saber se você tem namorado, noivo, sei lá...
- Tenho sim, noivo.
- Tem mesmo...puxa, não sabia que fadas tinham relacionamentos. E qual o nome dele, o que ele faz, me conta.
- O nome dele é Augusto e ele é professor de romeno.
- Professor de romeno? Eu nunca vi um professor de romeno. Pra dizer a verdade nunca conheci ninguém que falasse romeno. 
- Eu como fada tenho que namorar alguém que as pessoas não saibam que existe. Por exemplo, um professor de romeno.
- Faz sentido. Mas deve ser difícil arrumar trabalho, né?
- Nem me fale Andréia! Estamos fazendo um esforço danado para montar nossa casa. Móveis, eletrodomésticos.
- Puxa que legal!  Você me convida para seu casamento?
- Já está convidada! Bem, mas voltando ao assunto inicial...você falou sobre o Marcelo, que é seu ex-namorado, não é? E você está aflita por causa disso, ele te deixou depois de uma briga e você se sente culpada, quer voltar com ele. E  por isso que eu vim aqui, para tentar te ajudar.
- Puxa, como você sabe disso se eu nem te contei a história ainda?
- Você se esqueceu que eu sou uma fada? Para aparecer na história eu tenho que fazer o levantamento dos dados de quem eu vou ajudar.
- Disfarça. O que você disse é isso mesmo...nós brigamos, eu gritei com ele, ele me chamou de mandona e foi embora. Eu me sinto tão culpada..eu queria ligar, dizer o quanto quero ele comigo...mas bate um orgulho besta que me faz ficar mais pra baixo ainda. Os homens são tão  complicados Vania...
- São mesmo. Só que não adianta nada ficar dando uma de durona e deixar a história seguir. Às vezes eu e meu noivo temos uma ou outra pequena briga, mas no fim um dos dois sempre acaba cedendo e a gente sempre se entende.
- Puxa vida! Eu nunca imaginei que fadas brigassem. Seu eu tivesse uma varinha eu nunca teria problemas com meu namorado...
- Mas eu tenho Andréia,  mesmo sendo fada. Não se pode mudar a realidade sem esforço. Veja a Cinderela, mesmo com o auxílio de uma fada madrinha, não conseguiria nada se não se empenhasse em ir ao baile.
- Você tem razão. Só que eu não sei como você poderia me ajudar nesse assunto.
- Vejamos...vou pegar meu DPA.
- DPA? o que é isso?
- É uma versão atual para a varinha...Decodificador de Pedidos Aleatórios.
- Ahnn...
Vania pegou o aparelinho parecido com um palmtop digitou alguns números.
- O que é isso ? perguntou Andréia.
- É um livro. Chama-se 'Orgulho e preconceito'.
- Vania! Eu estou passando maus bocados com a briga que tive com meu namorado e você me vem com livros!
- Meu, você não quer ajuda?
- Quero sim, mas no que esse livro vai me ajudar?
- É uma história de uma moça que gosta muito de um rapaz mas o acha muito arrogante. Essa impressão começou num primeiro encontro e dura boa parte do livro. Mas também ela tem sua parte de culpa, pois usou o 'mesmo veneno' que viu no rapaz. Eu adoro este livro, se você for ver, tem até alguns ensinamentos que podem valer para essa questão de relacionamentos.
- Parece ser bom. Eu precisava também de outra coisa.
- Diga.
- É que eu precisava dar uma mudada...sabe, comprar umas roupas novas para me encontrar com ele...
- Hum...só que vai ficar difícil...
- Por que?
- Eu estou com problemas no meu decodificador. Veja.
Andréia pegou o aparelhinho e viu uma listagem na tela: '1- roupas, 2- viagens, 3- perfumes, 4- bolsas e acessórios, 5- eletro-eletrônicos, 6 - livros, cd's e dvd's, 7- cosméticos, 8- bibelôs, 9- sapatos, 10- celulares'.  Reparou que no ítem '1 - roupas' tinha um 'x' vermelho.
- Esse 'x' indica problemas, né? Perguntou Andréia.
- É sim, desde semana passada tem dado problema...mas...
- Mas...?
Vania enfiou a mão na bolsa que trazia contigo e tirou um cartão.
- Olhe! Estou com o cartão de crédito do Augusto aqui. Ele sempre me deixa usar. Que tal se fôssemos ver umas roupas?
- Puxa, você é uma fada moderna mesmo. Tem até cartão de crédito!
- Vamos lá?
- Demorou!

terça-feira, 31 de agosto de 2010

O meu Cinema Paradiso

"Helena é destemida..." Esta frase dita por um de nosso amigos sempre ecoou em minha mente.  Porém por mais que ecoasse, nunca acreditava nela. Helena parecia muito frágil em suas atitudes, meio indecisa. Claro que isso era uma percepção distorcida de minha parte, pois seus admiradores a sufocavam tanto, com tantos mimos, que aquele sufocamento também afetava a mim. E estes admiradores iam desde sua família, passando por parentes mais próximos, amigos de última hora e outros mais distantes de Helena e por último, eu. Verdade, eu sempre imaginei ser  o último em suas prioridades, apesar de parecermos muito um com o outro. Ela, assim como eu, não  apreciava mauricinhos que não sabiam nem lavar um prato, mas que se preocupavam com o derretimento das calotas polares; e também não levava em consideração as patricinhas que destilavam sua 'tristeza do mundo' por terem suas mães esquecido de levá-las para esta ou aquela festa - isso porque suas mães estavam entretidas com seus namorados.

Helena gostava de fazer tricô, o que escandalizava suas amigas. "Como alguém com mente aberta pode fazer isso, meu Deus?". Outras  - as patricinhas progressistas - diziam que a mulher contemporânea não poderia se sujeitar a estes ícones da submissão feminina. Os mauricinhos que a rodeavam constantemente viam isso com condescendência, visando um bote mais adiante. "Sabe, adoro garotas que revivem hábitos antigos, distantes dessa nossa realidade egoísta e consumista, você é especial por isso...". Helena parecia alheia a tudo isso, porém não demonstrava, fosse por incapacidade ou por conveniência, afinal não era todo mundo que tinha tantos admiradores ao seu redor.

Eu não dava palpites sobre sua vida por mais que a conhecesse, apesar de ela sempre insistir pedindo minha opinião sobre determinados assuntos. Ela sempre teve boas idéias a meu respeito, mas como já disse, como ela as defenderia nesta tormenta de afagos sociais que a rondava? De vez em quando ela tinha disposição de compartilhar seus momentos a sós comigo, de uma forma especial - ela gostava que a levasse ao cinema. E ir ao cinema com Helena era uma atividade que eu gostava muito. Ela gostava de comentar o enredo, os possíveis finais diferentes do que eram apresentados nos desfechos, gostava de fazer comparações com as tramas reais com as dos filmes. E eu adorava tudo isso, porque ela fazia estas coisas somente comigo, ela me confessou uma vez.

Um dia fomos ao cinema e Helena reclamou que as legendas do filme estavam borradas. Sugeri que nós fôssemos sentar mais adiante, nas primeiras filas para enxergar melhor - meio que a  contragosto, pois sempre sentávamos do meio para trás. No fim da sessão, Helena me confessou que  sentia  estar perdendo a visão. Aquilo foi um choque para mim, mais do que para ela. Helena consultou especialistas e um diagnóstico sombrio foi dado: em pouco tempo ela perderia a visão, se não total, parcialmente. Um sentimento coletivo de medo se apoderou de todos, de sua família, de seus amigos. Mas o mais interessante é que o medo não se apoderou de Helena como era de se supor.

Um dia enquanto estávamos a sós e sua cegueira já tinha avançado, Helena me disse que gostaria de passar a eternidade ao meu lado. Eu que nunca fiz projetos e planos numa extensão maior do que um semestre fiquei confuso; como suportar a infelicidade de minha amiga nesta nova fase? Não que eu visse esta infelicidade em sua nova condição e nas limitações que a doença causou, mas a via na minha incapacidade de ser um auxílio, alguém útil para alguém que sempre confiou em mim mais do que nos outros...eu pensei que não aguentaria.

Helena entretanto teve paciência comigo e pedia sempre para acompanhá-la em determinados lugares. Porém o lugar onde nos sentíamos bem e felizes era, ironicamente, no cinema. Sim, o cinema no qual ela não poderia ir, por não ser possível ver as tramas, o colorido das cenas, o batom das atrizes, as cores das camisas dos galãs, apenas trilhas sonoras e as falas dos personagens. Então um dia  ela sugeriu que eu fosse seu intérprete de cenas, descrevendo cada ação dos filmes. Eu achei estranho a idéia, porém fui convencido por ela.  E começamos a frequentar o cinema novamente e não precisávamos mais sentar nas primeiras fileiras, ficávamos nos últimos lugares. E eu era seu intérprete fiel (bem, não tão fiel assim, às vezes eu ficava com preguiça de ir e Helena me arrastava até lá...).

Quase todo fim de semana estávamos no cinema da cidade acompanhando os mais variados  tipos de enredo, desde comédias, filmes de ação, desenhos, matinês infantis, terror. E eu sempre narrava as tramas, e não era tão bom narrador assim, por vezes me perdia na história, mas Helena sempre paciente comigo chorava, sorria, se assustava com sua imaginação alimentada por minhas palavras. "O Stuart Little está agora sendo capturado por um gavião malvado", dizia eu e Helena comentava "Coitadinho dele, coitado do ratinho!". Em outra sessão eu narrava: "O horroroso George Clooney está correndo como um tonto pela rua" e aí Helena me dava um beliscão por causa daquele desaforo para com seu ídolo. Noutra eu narrava: "A minha  Penélope Cruz está maravilhosamente  tomando café da manhã..." e levava outro beliscão, sempre no braço direito. "O Steve Martin ficou apenas de cueca..." narrava eu, e Helena ria e ficava sem ar de tanto rir. De todos os tipos de filmes, o que eu mais gostava era dos de terror, não por causa do gênero, que nunca gostei de assistir, mas porque Helena sempre se agarrava ao meu braço em cenas aterroziantes. "O Drácula está se preparando para sugar o sangue da mocinha", dizia eu. E Helena apertava o meu braço cada vez mais forte. Essa Helena...sempre destemida.

domingo, 8 de agosto de 2010

E agora, José?


Me lembro dos tempos de infância, quando você trazia para nós presentes no Natal, depois de um ano letivo pesado. Lembro dos domingos que você trazia o Estadão com seus quilos e quilos de papel e eu ficava procurando ali algo para ler - os quadrinhos, uma crônica, algo que fizesse o domingo mais agradável possível. Me lembro de quando a bicicleta quebrou e você soldou uma barra de ferro para reforçar - ficou uma coisa esquisita, mas quem se importava? O importante era que ela estava ali, refeita, quase perfeita - mas pra dizer a verdade, ela estava perfeita sim, e a perfeição estava na liberdade de guiá-la onde a imaginação permitisse.

Me lembro que você tinha uma voz de barítono e gostava de cantar. Lembro que tocava violão muito mal e parecia não querer aprender direito. Me lembro do dia em que o Márcio, em sua ingenuidade infantil disse "que bom ter um pai que sabe fazer tudo, né?", referindo-se às suas habilidades de faz-tudo. Eu recordo de suas teimosias, das brigas, reconciliações. Recordo de que seu silêncio, por vezes vinha do fundo da alma, devido ao seu passado, junto com seus irmãos, de exclusão. Não deve ter sido fácil ser largado num lugar desconhecido, longe da mãe. Aquela reclusão parecia uma terapia solitária de alguém que parecia não querer incomodar ninguém com seus problemas.

Lembro que você nunca dizia o que devíamos fazer, nunca disse "faça isso que é o certo, faça aquilo que é o correto". Você ensinava pelos próprios exemplos que dava, de trabalho e dedicação, não deixando faltar o que precisávamos. E os seus exemplos, associados ao seu modo de ser e enxergar o mundo possibilitou que traçássemos nosso próprio destino de modo correto. Com imperfeições, evidente, mas correto. E lembro que mesmo na sua imperfeição, víamos um referencial de algo bom, que nos auxiliaria a caminhar por nós mesmos.

Lembro do dia que você partiu. Foi repentino, como se não quisesse que notássemos, que não nos preocupássemos. Mas ficamos tristes, pois nem pudemos relembrar todas as coisas boas e ruins que tivemos todos nós juntos. A sua partida discreta foi um resumo da sua vida discreta, de não querer ser lembrado como um número. Mas sabíamos e sabemos que você não foi um número apenas, apesar de tentarem que imaginasse isso de si mesmo. 

Neste dia, cheio de números, cada um comemora a data do seu jeito. Como você nunca deu bola para datas, apenas relembro o quanto você foi especial para todos nós, mesmo que nunca soubesse disso, ou não fizesse questão de saber. A maior herança que um pai deixa para os filhos é aquela que perdura. E a sua foi a de sinceridade e de desapego a algo que trouxesse empecilho a uma vida, se não plena, ao menos feliz. E são essas coisas que quero carregar comigo, esse ideal de se extrair felicidade, mesmo onde não haja plenitude. Uma vida plena se faz de pedaços que se colam e ao final possam indicar que valeu a pena. E para você, vejo que valeu. Gostaria de ouvir um comentário seu, daqueles descomprometidos, que você dizia sobre os mais variados temas. Porém não há mais nada a ser escrito, apenas seguido. E mesmo que em algum dia necessite recorrer aos seus ensinamentos de vida e mesmo que saiba como proceder, prazeirosamente lembrarei da pergunta, apesar de já saber a resposta: "E agora, José?"

sábado, 31 de julho de 2010

Louça acumulada

- Cara, tô me sentindo tão sozinho naquela casa!
- Há quanto tempo ela tá viajando?
- Faz uma semana. Vão ser duas fora. Pelo menos não foi a mãe dela que veio ficar este tempo aqui.
- E porque você não liga pra ela?
- Sei lá, não tinha pensado nisso ainda...
- Quais são as coisas boas que ela te traz e que você está sentindo falta?
- Que pergunta, ela é minha mulher...deve ser as coisas que toda mulher traz.
- Mas cada esposa tem um coisa diferenciada. Tente lembrar alguma coisa!
- O arroz que ela faz...
- Não cara, uma coisa que somente ela pode te trazer...arroz você come em qualquer lugar!
- Deixa ver...acho que são as esquisitices dela. Por exemplo a mania  dela  ficar no sofá penteando o cabelo desesperadamente quando quer sair. Ela faz isso e fica me olhando...tem vezes que nem percebo pois estou vendo  tevê. Não seria mais fácil ela dizer "Vamos sair hoje..."? Ela sempre tem essa mania...
- Apesar de vocês serem casados e compartilharem coisas e momentos, não deve ser muito empolgante dizer para ela  que você está com saudade de suas manias, né?
- Outra coisa de que me lembro é da pia cheia de seus cabelos...nós já brigamos algumas vezes por causa daqueles cabelos entupindo tudo!
- Não, isso não! Uma coisa que te faça querer ela bem, igual quando vocês namoravam e você ficava esperando o fim de semana para encontrar com ela. Deve ter algo... inclusive você fala tanto do cabelo dela, deve ser isso. Você deveria ligar para ela e dizer que está com saudade de seus cabelos, seu perfume que te faz sentir bem, essas coisas!
- Sei não...tô pensando aqui...
- Quer coisa mais romântica do que falar dos cabelos de uma mulher?
- Mas os cabelos de que lembro são os deixados no sofá e na pia...
- Tente lembrar outra coisa então.
- Ah! Agora lembrei!
- É de alguma parte do corpo dela, hein?
- Não!
- Algum nome carinhoso que vocês se tratam?
- Também não...
- Não desconfio o que é, fala! Se for uma coisa boa você liga para ela e diz :"Oi, estive pensando muito em você depois que lembrei de tal coisa..."
- É uma coisa  que vi e que me fez lembrar carinhosamente dela...
- Diga! Fale imaginando que  estivesse falando com ela ao telefone. Vai.
- Hum...
- Vai, fala!
- "Oi querida, estou com muita, mas muita saudade de você. E essa saudade aumentou ainda mais quando vi a pia da cozinha cheia de pratos usados hoje de tarde...volta logo...beijos!
- ............!?

segunda-feira, 19 de julho de 2010

Visão além do muro

Durante certo tempo na Santa Casa de São Paulo no ano de 1970, quatro homens dividiam um recinto daquele hospital. Dentre os quatro se destacava um que ficava o tempo todo narrando para os colegas as coisas que aconteciam no Largo do Arouche - isso porque seu leito estava ao lado da janela, a única do recinto. Ele contava tudo o que via: o movimento na floricultura com rapazes que iam comprar flores para suas namoradas, filhos que compravam flores para as mães, pessoas que queriam satisfazer com flores as pessoas queridas; contava sobre o movimento no 'Cine Arouche', como as pessoas estavam vestidas para assistir às sessões, descrevia os cartazes com os filmes exibidos, seus atores e atrizes. Narrava como estava o tempo, se ameaçava chover ou não. Como era época de Natal, descrevia as decorações da festa natalina nas lojas, os enfeites nos terraços dos prédios, crianças carregando pacotes, enfim a atmosfera de encanto que reinava ali.

Isso incomodava os outros pacientes do recinto. Alguns o xingavam de inoportuno, inconveniente, pois somente queria para si a janela com sua paisagem agradável, enquanto os outros viam apenas paredes brancas, equipamentos, agulhas, enfim um cenário nada apetecível...

Entretanto o homem não se importava com as reclamações e continuava com suas narrativas de tudo o que acontecia do lado de lá do hospital com uma riqueza de detalhes impressionante, o que irritava ainda mais os três colegas de leito.

Na noite de Natal daquele ano de 1970 o homem das descrições impressionantes e inconveniente, não resistiu e faleceu. Houve, logo após a retirada de seu corpo, o início de disputa entre os três pacientes restantes para saber qual deles iria ficar ao lado da janela e apreciar a paisagem tão bem descrita pelo homem que havia morrido há pouco.

No dia de Natal, um deles foi escolhido para ficar na janela. Mal amanheceu o dia e o homem pediu para que abrissem a janela para que pudesse apreciar o largo do Arouche e toda a paisagem rica em detalhes que havia imaginado nas narrativas do homem inconveniente. Mas então, ao abrir da janela, o homem não conseguiu ver nada a não ser um muro que impossibilitava a visão para fora do hospital. Ele intrigado perguntou ao médico responsável o que estava acontecendo:

'Este muro está aí há anos', respondeu o médico.
'Mas como então aquele paciente que morreu ontem ficava narrando o que via no Largo do Arouche?'
'Narrando o que via? Impossível isso acontecer'
'Por que?' perguntou o paciente escolhido para ficar na janela.
'Porque ele era cego', respondeu o médico, saindo do recinto.