quinta-feira, 27 de maio de 2010

Nossa maior alegria é ver você feliz!



O gerente chega e diz para ela (de surpresa):

- Eu já cansei disso, todo dia isso se repete, estou cansado...vocês saem lá fora para discutir a relação durante o almoço, tudo bem, isso é uma coisa. Agora, ficar aqui dentro, de tempos em tempos querendo misturar os negócios do mercado com o de vocês, aí a história é outra. Isso atrapalha a produtividade, sabia, Cris?
- Eu sei sim, Clóvis, mas a empresa é parte da minha vida e a minha vida é parte da empresa...não é essa a idéia passada no último seminário motivacional do Tadakio? (ela se referia a palestra dada aos funcionários chamada 'A otimização das relações humanas através da ótica empresarial contemporânea - um novo paradigma na qualidade de vida'). Pelo que entendi a empresa é uma extensão de nós mesmos e nós somos  uma extensão dela, não é?
- Você, não confunda as bolas (rosto ofegante). Eu não tenho nada a ver com os sabores e dissabores do relacionamento de vocês (enquanto dizia isso, mexia na aliança de casado, como se tentasse escondê-la). A  vida pré-conjugal sua não me interessa, o que me interessa são as vendas, que tem caído bastante por causa disso. Você é meu braço direito aqui, por isso é a subgerente (pega Maria Cristina pelo braço enquanto diz isso).
- É você que está confundindo as bolas! ela responde em tom paulatinamente exaltado. Alguns clientes da loja reparam e observam de longe a discussão. Você está é com ciúmes pois soube que comigo não poderia ser...eu nunca poderia ser a filial do seu ego. Parece que não entendeu ainda, eu não sou sua filial! Você se casou com outra, não comigo - "felizmente", pensou Maria Cristina consigo mesma, enquanto esboçava um sorriso disfarçado. Eu não gosto de ser achincalhada, nunca fui, você sabe disso!


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O sistema de som do supermercado anuncia para os clientes numa voz feminina:
"Prezados senhores clientes do Hipermercado Talarico lamentamos a demora dos caixas, pois temos no momento uma demanda acima da média, o que impossibilita uma agilidade maior; contamos com sua compreensão!"
- Cristina! Eu não vou permitir que se misturem negócios particulares com os da empresa! (Clóvis apertou novamente o braço, desta vez mais forte ainda).
- Me solta, você está dando vexame aqui dentro!
- Vexame maior do que ficar aqui com seu noivinho de ti-ti-ti conversando coisinhas de casamento no expediente?
- Me solta, seu grosso! Isso é assédio sabia? Você está me assediando e assediando meu noivo, mas vou buscar meus direitos. O que você pretende fazer agora, demitir o Luis?
 O monitor de segurança mostra a imagem dos dois um tanto turva e a legenda 'Cam 3, corredor 1, 09:05pm'.
- Não, vocês dois vão fazer isso por mim. Sabe porquê? Porque quando chegar o boletim da matriz semana que vem, nossos indicadores estarão lá embaixo, o que me autorizam a mexer na equipe  e  você e o Luis serão os primeiros a rodar...
- Pode tirar o cavalinho da garoa, Clóvis, você sabe melhor do que eu você é que é o incompetente nesta história, eu e o Luis temos vários prêmios dados pelo Talarico por causa do nosso desempenho...
- Veremos isso, aguardem...deveriam se espelhar em mim, que sou exemplar tanto aqui quanto lá fora; sei administrar a vida pessoal separada da profissional.
Maria Cristina ficou calada, pois sabia que se abrisse a boca, daria margem para a outra discussão. Quem melhor do que ela para dizer que aquilo dito por ele era mentira?
O telefone celular de Clóvis toca. Ele atende:
-Sim, sou eu...olha, não vou poder comparecer à reunião..sinto muito, como estão as notas? Não muito boas...sei, mas a culpa não é minha, posso afirmar. Sim, sei que é importante acompanhar, mas o trabalho, sabe...na próxima quem sabe...de qualquer forma eu passo aí para saber das notas dele...


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Maria Cristina já está longe quando o colega desliga o celular.  Clóvis faz uma expressão de satisfação e sugere a si mesmo que o recado foi bem entendido pela ex-namorada, que agora pensará duas vezes antes de misturar trabalho e futura família. Ele arruma a gravata onde está pendurado o crachá do Grupo Talarico, onde se pode ler o slogan da empresa: 'Nossa maior alegria é ver você feliz!'

domingo, 16 de maio de 2010

A menina-mulher da bolsa de brim

Lá está ela como de costume no mesmo horário de sempre. Meio-dia e meia ela sobe no ônibus, eu a observo em seu uniforme escolar - uma calça azul e uma blusa da mesma cor com a estampa 'Colégio Adventista'. Seu corpo é esguio, em tempos antigos seria chamada de sílfide, mas sua elegância não é artificial, existe harmonia entre seu rosto, seu corpo e seus gestos. Tudo nela é conforme, certamente não tem vaidade excessiva em busca de uma beleza forjada. Sua fisionomia é constantemente serena, mesmo após uma manhã cansativa de estudos, trabalhos em grupo, exames difíceis. Ela carrega em si o ar de alguém satisfeita com seus próprios méritos, sejam eles os significativos ou aqueles que trazemos conosco apenas para nossa satisfação íntima. 

Ela senta no corredor oposto ao meu com sua bolsa de brim - e esta bolsa mostra um contraste no visual da estudante. Apesar de estar no colégio  e de ser uma adolescente ainda, ela já apresenta traços de mulher. Seu cabelo é comprido e ela sempre o tem  solto. Seu olhar é uma mistura de interesse com o que ocorre ao seu redor com o encantamento daqueles que tem muito a descobrir neste mundo de sensações difusas, cenários improváveis, cenas impensáveis e roteiros reescritos; ela está sempre atenta. Durante a viagem uma surpresa - ela saca uma goma de mascar da bolsa  (que talvez a faça mais feminina do que suas colegas  em suas mochilas descontraídas) e a mastiga de modo especial. Ela parece, enquanto mastiga, compenetrada em algum tema importante. Parece descordar de algum ensinamento que traga forçado consigo,  possivelmente um tema abordado na aula de História, onde foi a ela ensinado que os perdedores são apenas figurantes no palco dos grandes vultos da humanidade. Sua face sugere que  ela discorda desta visão maquiada da História;  provavelmente ache  em suas concepções juvenis que a história da humanidade não é  escrita apenas pelos vitoriosos. Os oprimidos tem lugar especial em seus conceitos sobre a saga  humana e isso a faz vislumbrar algo novo e esperançoso.

O ônibus adentra na periferia, os problemas são mais visíveis, as carências parecem estar estampadas em esquinas, muros, nas casas de pessoas sem rosto e sem voz. Ela continua a meu lado com uma expressão agora mais serena apesar de estar segurando firme  a bolsa de brim pela alça. Já abandonou certamente os conceitos históricos, agora mais relaxada parece pensar em algo ameno, talvez no fim de semana, nas conversas com as amigas do bairro, na reunião familiar de domingo, ou pense no ócio que tanto merece após uma semana árdua de estudos.  Imagino que os esforços durante a semana não foram poucos para minha amiga colegial, ela moradora de uma região esquecida por todos, inclusive pelo Estado. Tento ainda imaginar o esforço que seus pais desempenham para manter os estudos da  filha, para que ela tenha um futuro melhor neste país onde a educação é um privilégio, quando deveria ser um direito. Sei que  minha amiga colegial não  está alheia a estas questões, certamente em suas idéias  esta problemática  é analisada frequentemente. Mas não neste instante. Ela continua serena, abstraída com a paisagem e com o sol da tarde de outono e faz planos para seu merecido descanso semanal.  Eu, ao contrário, não posso perder mais tempo; preciso descer para uma tarde de trabalho numa escola da periferia. Desço e  observo-a na janela. Vejo  o rosto singelo da menina-mulher da bolsa de brim, que segue adiante, assim como a vida de itinerários incertos.

domingo, 2 de maio de 2010

Pamonhas, pamonhas, pamonhas



- Ahnnn...
- Que foi, amor?
- Estou carente...
Paulo sabia que quando a esposa estava carente significava que ele estava abusando da ausência para com ela. Eram casal sem filhos, mas mesmo assim o trabalho na empresa de software estava tomando muito de seu tempo. Às vezes trazia trabalho para casa, varava madrugadas no computador. E Pâmela reclamava sempre que isso acontecia, ou melhor, reclamava do seu jeito dizendo que estava carente.


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Paulo prometeu para Pâmela naquele mesmo dia que o próximo fim de semana seria inesquecível. Ele deixaria o trabalho arquivado em alguma gaveta e viveria somente para ela, teriam uma nova lua de mel, enfim todo aquele papo do tipo 'vamos tirar o atraso'.
E o dia veio, a noite de sexta-feira foi um estouro, as carruagens de fogo cruzaram o céu estrelado e tudo se renovou.
Na manhã de sábado, tudo parecia festivo para o casal. Paulo inclusive depois de muito tempo se lembrou que foi o primeiro sábado em que não acordou já pensando nos abacaxis que ia descascar na segunda. Estava sereno, relaxado entre os lençóis. Tão relaxado que não percebeu que Pâmela  olhava para ele com aquele olhar enigmático que as mulheres fazem quando querem algo...
- Estou carente...
Ele quase soltou um "De novo?", mas conteve-se a tempo e achou que eles mereciam sim, o melhor. E o melhor havia apenas começado, que viesse o cardápio completo.
- Ahnnn...Paulo...


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A cabeça de Paulo, que depois de vários meses estava no lugar numa manhã de sábado, havia se esquecido que inúmeros profissionais trabalham nos fins de semana. Entre eles o vendedor de pamonhas que havia parado inconvenientemente no portão da casa para anunciar o produto:
"Pamonhas, pamonhas, pamonhas de Piracicaba! É o puro creme do milho verde, curau e pamonhas, que delícia! Pamonhas, pamonhas, pamonhas..."
Todo este marketing da iguaria piracicabana fez mal à Pâmela. Ela literalmente 'travou'. Era sempre assim, quando ela e Paulo estavam juntos e aparecia alguma coisa que a desconcentrasse, ela 'travava'. Isso sempre acontecia quando aparecia uma lagartixa na parede, ou então quando sua irmã deixava a gata com eles para viajar com o namorado. Pobre Calabresa, depois que Pâmela Cristina a arremessou pela janela por ter estragado uma vez seu momento a sós com Paulo, nunca mais foi a mesma. O pior mesmo foi o pica-pau que apareceu numa noite para martelar a paineira na casa da Joyce (depois disso nunca mais se falaram, a culpa era dela que tinha um árvore em casa, humpf!)


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"Pamonhas, pamonhas, pamonhas...venham provar o puro creme do milho verde!'
- Eu não consigo assim, amor...
- O que eu posso fazer?
- Vá falar com o homem para parar com o barulho...
-  Eeeu? Como eu vou explicar para ele isso?
- Ah....você não me ama, é isso...
- Mas Pam, o que você quer que eu faça?
Sempre que Paulo pronunciava o fatídico 'Mas Pam, o que você quer que eu faça?' após o dramático 'Ah...você não me ama, é isso...' a coisa desandava. Ela ficava com a mesma cara de quando queria ver as carruagens de fogo, só que com a boca torta para o lado esquerdo.
- Mandar aquele maldito homem ir embora daqui, junto com aquele maldito alto-falante, vender suas malditas pamonhas em outro maldito lugar!


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Paulo foi até o portão.
"Eu tenho o melhor marido do mundo, morram de inveja mulheres..." pensou. Ela sempre pensava assim quando ele ia consertar a torneira ou lavava a louça.
Ela percebeu Paulo batendo a porta, mas o homem continuava na porta berrando o produto.
- Você não ameaçou o homem, não mandou ir embora? perguntou.
- Não. Ele ouviu você gritando, pediu desculpas e me deu estas pamonhas. Quer uma? Você sabia que o milho é afrodisíaco para algumas culturas indígenas? 
"Pamonhas, pamonhas, pamonhas", ouvia-se o som já distante...


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Foi providencial a compra daquele sofá novo na semana anterior...