Durante certo tempo na Santa Casa de São Paulo no ano de 1970, quatro homens dividiam um recinto daquele hospital. Dentre os quatro se destacava um que ficava o tempo todo narrando para os colegas as coisas que aconteciam no Largo do Arouche - isso porque seu leito estava ao lado da janela, a única do recinto. Ele contava tudo o que via: o movimento na floricultura com rapazes que iam comprar flores para suas namoradas, filhos que compravam flores para as mães, pessoas que queriam satisfazer com flores as pessoas queridas; contava sobre o movimento no 'Cine Arouche', como as pessoas estavam vestidas para assistir às sessões, descrevia os cartazes com os filmes exibidos, seus atores e atrizes. Narrava como estava o tempo, se ameaçava chover ou não. Como era época de Natal, descrevia as decorações da festa natalina nas lojas, os enfeites nos terraços dos prédios, crianças carregando pacotes, enfim a atmosfera de encanto que reinava ali.
Isso incomodava os outros pacientes do recinto. Alguns o xingavam de inoportuno, inconveniente, pois somente queria para si a janela com sua paisagem agradável, enquanto os outros viam apenas paredes brancas, equipamentos, agulhas, enfim um cenário nada apetecível...
Entretanto o homem não se importava com as reclamações e continuava com suas narrativas de tudo o que acontecia do lado de lá do hospital com uma riqueza de detalhes impressionante, o que irritava ainda mais os três colegas de leito.
Na noite de Natal daquele ano de 1970 o homem das descrições impressionantes e inconveniente, não resistiu e faleceu. Houve, logo após a retirada de seu corpo, o início de disputa entre os três pacientes restantes para saber qual deles iria ficar ao lado da janela e apreciar a paisagem tão bem descrita pelo homem que havia morrido há pouco.
No dia de Natal, um deles foi escolhido para ficar na janela. Mal amanheceu o dia e o homem pediu para que abrissem a janela para que pudesse apreciar o largo do Arouche e toda a paisagem rica em detalhes que havia imaginado nas narrativas do homem inconveniente. Mas então, ao abrir da janela, o homem não conseguiu ver nada a não ser um muro que impossibilitava a visão para fora do hospital. Ele intrigado perguntou ao médico responsável o que estava acontecendo:
'Este muro está aí há anos', respondeu o médico.
'Mas como então aquele paciente que morreu ontem ficava narrando o que via no Largo do Arouche?'
'Narrando o que via? Impossível isso acontecer'
'Por que?' perguntou o paciente escolhido para ficar na janela.
'Porque ele era cego', respondeu o médico, saindo do recinto.
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