Me lembro dos tempos de infância, quando você trazia para nós presentes no Natal, depois de um ano letivo pesado. Lembro dos domingos que você trazia o Estadão com seus quilos e quilos de papel e eu ficava procurando ali algo para ler - os quadrinhos, uma crônica, algo que fizesse o domingo mais agradável possível. Me lembro de quando a bicicleta quebrou e você soldou uma barra de ferro para reforçar - ficou uma coisa esquisita, mas quem se importava? O importante era que ela estava ali, refeita, quase perfeita - mas pra dizer a verdade, ela estava perfeita sim, e a perfeição estava na liberdade de guiá-la onde a imaginação permitisse.
Me lembro que você tinha uma voz de barítono e gostava de cantar. Lembro que tocava violão muito mal e parecia não querer aprender direito. Me lembro do dia em que o Márcio, em sua ingenuidade infantil disse "que bom ter um pai que sabe fazer tudo, né?", referindo-se às suas habilidades de faz-tudo. Eu recordo de suas teimosias, das brigas, reconciliações. Recordo de que seu silêncio, por vezes vinha do fundo da alma, devido ao seu passado, junto com seus irmãos, de exclusão. Não deve ter sido fácil ser largado num lugar desconhecido, longe da mãe. Aquela reclusão parecia uma terapia solitária de alguém que parecia não querer incomodar ninguém com seus problemas.
Lembro que você nunca dizia o que devíamos fazer, nunca disse "faça isso que é o certo, faça aquilo que é o correto". Você ensinava pelos próprios exemplos que dava, de trabalho e dedicação, não deixando faltar o que precisávamos. E os seus exemplos, associados ao seu modo de ser e enxergar o mundo possibilitou que traçássemos nosso próprio destino de modo correto. Com imperfeições, evidente, mas correto. E lembro que mesmo na sua imperfeição, víamos um referencial de algo bom, que nos auxiliaria a caminhar por nós mesmos.
Lembro do dia que você partiu. Foi repentino, como se não quisesse que notássemos, que não nos preocupássemos. Mas ficamos tristes, pois nem pudemos relembrar todas as coisas boas e ruins que tivemos todos nós juntos. A sua partida discreta foi um resumo da sua vida discreta, de não querer ser lembrado como um número. Mas sabíamos e sabemos que você não foi um número apenas, apesar de tentarem que imaginasse isso de si mesmo.
Neste dia, cheio de números, cada um comemora a data do seu jeito. Como você nunca deu bola para datas, apenas relembro o quanto você foi especial para todos nós, mesmo que nunca soubesse disso, ou não fizesse questão de saber. A maior herança que um pai deixa para os filhos é aquela que perdura. E a sua foi a de sinceridade e de desapego a algo que trouxesse empecilho a uma vida, se não plena, ao menos feliz. E são essas coisas que quero carregar comigo, esse ideal de se extrair felicidade, mesmo onde não haja plenitude. Uma vida plena se faz de pedaços que se colam e ao final possam indicar que valeu a pena. E para você, vejo que valeu. Gostaria de ouvir um comentário seu, daqueles descomprometidos, que você dizia sobre os mais variados temas. Porém não há mais nada a ser escrito, apenas seguido. E mesmo que em algum dia necessite recorrer aos seus ensinamentos de vida e mesmo que saiba como proceder, prazeirosamente lembrarei da pergunta, apesar de já saber a resposta: "E agora, José?"
9 comentários:
Poxa, Marcos...o seu post me tocou...meu pai tbm se foi, isso há quase 15 anos...tbm me lembro dos conselhos que meu pai me dava...fico triste por ter vivido apenas 10 anos ao lado dele...
Bela homenagem ao seu pai!Gostei!!=)
Obrigado Andriéli...
O meu pai se foi há menos de dois meses e ainda estou me recuperando desse choque.
Me senti tocado por vc ter dito que seu pai se foi tão cedo...
Não deve ter sido fácil para vc não é? Mas
que bom que se lembra dos conselhos do seu pai! Apesar de ter vivido pouco tempo com ele, imagino que sua imagem ficará para sempre. E acredite, os conselhos dele não foram em vão! =)
Obrigada pela visita Marcos!
Mas engraçado, eu sempre aprendi (tanto na igreja, na escola, na faculdade e na vida) que o primeiro passo para mudar/melhorar é reconhecer o erro/falha. Mais engraçado ainda é que venho notando que estou me preocupando mais com a saúde do meu próprio corpo do que com os que os outros pensam de mim. Um grande avanço, pois minha auto-sabotagem tem uma certa raiz nisso... nessa atitude besta de medir meus limites pelo os dos outros. Quando estou melhorando de saúde e de postura, começo a ver que existem pessoas em melhor situação q eu, que fazem mais q eu e "blá blá blá", e por não ser tal qual elas eu fico me punindo.
Só que como eu reconheci esse meu defeito e pedi a ajuda de Deus pra mudar, percebo q estou mudando. Aos poucos, mas estou mudando.
ps: (gostei do seu blog ^^)
Muito profundo seu texto, a sutileza das suas palavras, mostram a imensa sensibilidade que existe e você.
Aposto que um ser humano como você causava muito orgulho ao seu pai.
beijos
Aryane Pinheiroo
(Brilho da Lua)
Aryane,
Pois é, mas pesando na balança acho que meu orgulho por ele é muito maior!
Bjos.
Ah, essas saudades, essas perdas definitivas... Mas, que bom, fica o legado, que é eterno, pra fazer companhia para esse amor inquestionável, insuperável. O tempo todo a gente recorre aos conselhos deles, nossos pais, mães, avós... recorre e utiliza sem nem perceber. A gente sai de dentro deles, e depois são eles que entram em nós, pra sempre.
Adorei seu blog!
Obrigada pela visita e comentários nos meus também.
Beijos
Obrigado Aliz, também linkei o seu!
Bjos
Profundo teu texto. Emocionante tambem! Sei como é essa dor, porém a dor da perda sempre é anestesiada. Te cuida!
- Adorei sua visita em meu blog. Estou seguindo-te. Beijos
Ana Clara,
Obrigado pelas palavras, seja bem vinda também!
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