"Helena é destemida..." Esta frase dita por um de nosso amigos sempre ecoou em minha mente. Porém por mais que ecoasse, nunca acreditava nela. Helena parecia muito frágil em suas atitudes, meio indecisa. Claro que isso era uma percepção distorcida de minha parte, pois seus admiradores a sufocavam tanto, com tantos mimos, que aquele sufocamento também afetava a mim. E estes admiradores iam desde sua família, passando por parentes mais próximos, amigos de última hora e outros mais distantes de Helena e por último, eu. Verdade, eu sempre imaginei ser o último em suas prioridades, apesar de parecermos muito um com o outro. Ela, assim como eu, não apreciava mauricinhos que não sabiam nem lavar um prato, mas que se preocupavam com o derretimento das calotas polares; e também não levava em consideração as patricinhas que destilavam sua 'tristeza do mundo' por terem suas mães esquecido de levá-las para esta ou aquela festa - isso porque suas mães estavam entretidas com seus namorados.
Helena gostava de fazer tricô, o que escandalizava suas amigas. "Como alguém com mente aberta pode fazer isso, meu Deus?". Outras - as patricinhas progressistas - diziam que a mulher contemporânea não poderia se sujeitar a estes ícones da submissão feminina. Os mauricinhos que a rodeavam constantemente viam isso com condescendência, visando um bote mais adiante. "Sabe, adoro garotas que revivem hábitos antigos, distantes dessa nossa realidade egoísta e consumista, você é especial por isso...". Helena parecia alheia a tudo isso, porém não demonstrava, fosse por incapacidade ou por conveniência, afinal não era todo mundo que tinha tantos admiradores ao seu redor.
Eu não dava palpites sobre sua vida por mais que a conhecesse, apesar de ela sempre insistir pedindo minha opinião sobre determinados assuntos. Ela sempre teve boas idéias a meu respeito, mas como já disse, como ela as defenderia nesta tormenta de afagos sociais que a rondava? De vez em quando ela tinha disposição de compartilhar seus momentos a sós comigo, de uma forma especial - ela gostava que a levasse ao cinema. E ir ao cinema com Helena era uma atividade que eu gostava muito. Ela gostava de comentar o enredo, os possíveis finais diferentes do que eram apresentados nos desfechos, gostava de fazer comparações com as tramas reais com as dos filmes. E eu adorava tudo isso, porque ela fazia estas coisas somente comigo, ela me confessou uma vez.
Um dia fomos ao cinema e Helena reclamou que as legendas do filme estavam borradas. Sugeri que nós fôssemos sentar mais adiante, nas primeiras filas para enxergar melhor - meio que a contragosto, pois sempre sentávamos do meio para trás. No fim da sessão, Helena me confessou que sentia estar perdendo a visão. Aquilo foi um choque para mim, mais do que para ela. Helena consultou especialistas e um diagnóstico sombrio foi dado: em pouco tempo ela perderia a visão, se não total, parcialmente. Um sentimento coletivo de medo se apoderou de todos, de sua família, de seus amigos. Mas o mais interessante é que o medo não se apoderou de Helena como era de se supor.
Um dia enquanto estávamos a sós e sua cegueira já tinha avançado, Helena me disse que gostaria de passar a eternidade ao meu lado. Eu que nunca fiz projetos e planos numa extensão maior do que um semestre fiquei confuso; como suportar a infelicidade de minha amiga nesta nova fase? Não que eu visse esta infelicidade em sua nova condição e nas limitações que a doença causou, mas a via na minha incapacidade de ser um auxílio, alguém útil para alguém que sempre confiou em mim mais do que nos outros...eu pensei que não aguentaria.
Helena entretanto teve paciência comigo e pedia sempre para acompanhá-la em determinados lugares. Porém o lugar onde nos sentíamos bem e felizes era, ironicamente, no cinema. Sim, o cinema no qual ela não poderia ir, por não ser possível ver as tramas, o colorido das cenas, o batom das atrizes, as cores das camisas dos galãs, apenas trilhas sonoras e as falas dos personagens. Então um dia ela sugeriu que eu fosse seu intérprete de cenas, descrevendo cada ação dos filmes. Eu achei estranho a idéia, porém fui convencido por ela. E começamos a frequentar o cinema novamente e não precisávamos mais sentar nas primeiras fileiras, ficávamos nos últimos lugares. E eu era seu intérprete fiel (bem, não tão fiel assim, às vezes eu ficava com preguiça de ir e Helena me arrastava até lá...).
Quase todo fim de semana estávamos no cinema da cidade acompanhando os mais variados tipos de enredo, desde comédias, filmes de ação, desenhos, matinês infantis, terror. E eu sempre narrava as tramas, e não era tão bom narrador assim, por vezes me perdia na história, mas Helena sempre paciente comigo chorava, sorria, se assustava com sua imaginação alimentada por minhas palavras. "O Stuart Little está agora sendo capturado por um gavião malvado", dizia eu e Helena comentava "Coitadinho dele, coitado do ratinho!". Em outra sessão eu narrava: "O horroroso George Clooney está correndo como um tonto pela rua" e aí Helena me dava um beliscão por causa daquele desaforo para com seu ídolo. Noutra eu narrava: "A minha Penélope Cruz está maravilhosamente tomando café da manhã..." e levava outro beliscão, sempre no braço direito. "O Steve Martin ficou apenas de cueca..." narrava eu, e Helena ria e ficava sem ar de tanto rir. De todos os tipos de filmes, o que eu mais gostava era dos de terror, não por causa do gênero, que nunca gostei de assistir, mas porque Helena sempre se agarrava ao meu braço em cenas aterroziantes. "O Drácula está se preparando para sugar o sangue da mocinha", dizia eu. E Helena apertava o meu braço cada vez mais forte. Essa Helena...sempre destemida.
2 comentários:
Gostei do texto!!!=)
Brigadão, Andrielli! =)
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