sábado, 6 de novembro de 2010

Estela volta para casa

- Moça...moça...acorde!
Estela abriu os olhos de supetão contrariando sua sonolência. Viu a policial na sua frente. Não lembrava de quanto tempo estava ali dormindo sentada no ponto de ônibus. Uma senhora havia visto a moça vestida de preto e maquiagem pesada que parecia tão frágil para estar de manhã de domingo sozinha numa situação tão indefesa. Então chamou a polícia para ajudar.
- Você está bem, mocinha? perguntou a senhora.
- Estou sim, disse Estela.
- Mora aqui perto? questionou a policial. 
- Sim...sem ter noção de onde estava.

Estela levantou-se ainda um pouco sonolenta e agradeceu o apoio da policial e da senhora. Ergueu-se e tentou lembrar de como havia parado naquele ponto. Buscou na memória e descobriu que tinha saído no sábado à noite com seus amigos góticos para beber num bar do centro. Quando retornavam para casa de manhã  por ter bebido além da conta, não conseguiu seguir o grupo, ficando ali mesmo no ponto da Avenida Francisco Morato enquanto faziam baldeação de ônibus. Ninguém a esperou, ninguém dos seus amigos quis ficar ali com ela, ninguém se compadeceu de seu torpor...não esperava isso dos amigos...poderia ser assaltada, roubada ou coisa pior...Mas não queria pensar naquilo, aquele episódio poderia ser o combustível que tanto queria para fazer uma mudança em sua vida.

A garota de tantos sonhos estava ali, numa manhã de domingo com a maquiagem borrada, desalinhada, cheirando a coquetéis consumidos numa frequência tão rápida,  numa busca ansiosa por viver o que ainda não podia e talvez não desejasse. Mas não poderia ser diferente, ninguém nunca a ouviu...os pais ausentes, os problemas de família. 'Essa menina é traumatizada', disse uma vez uma das tias. Não tinha capacidade de apontar culpados, apenas de ter alguns momentos arredios de alegria de uma criança. Uma pesssoa que lhe proporcionava estes momentos era a avó Elisa - a vó Lisa como era chamada por ela, única neta.

Estela entrou no ônibus vazio; o motorista a observou de cima a baixo, o cobrador não foi tão invasivo assim, apenas passou o cartão sem levantar os olhos, ela  sentou-se no meio. Durante a viagem relembrava da infância conturbada, dos anseios, das turbulências que sua existência parecia causar na família. 'É porque ela é temporã!' dizia a avó paterna para julgar e acusar aquela pequena criatura que tinha a esperança de trazer uma pouco de alegria a um casamento que prometia ser duradouro, mas que não foi. O sol paulistano nascia já vigoroso, parecendo desafiar Estela que ainda convalescia pelos excessos; os raios batiam no vidro do ônibus de modo fosforecente. A garota deixou de lembrar um pouco da familia, começou a relembrar das brincadeiras de menina, das bonecas. O caderno de stickers, onde colava os adesivos que ganhava com ilustrações de bichinhos, personagens de desenhos animados que adorava assistir na tv. Das amigas gêmeas Talita e Priscila que iam até a sua casa para brincar; uma vez as três quiseram brincar  de maquiadoras e cabeleireiras usando sem permissão os cosméticos da mãe de Estela, o que lhe rendeu uma semana de castigo sem ver as amigas. Por fim a pena foi reduzida para dois dias, graças à intervenção da vó Lisa que defendeu a neta e as amigas, argumentando com a filha que seria injusto castigar uma amizade de uma criança tão desprovida de afeto.

Ao lembrar do episódio, Estela juntou um sorriso que parecia uma eternidade, visto os últimos tempos de vazio e busca constante por algo que a realizasse. Entristeceu-se de novo ao lembrar que chegaria e nem seria notada. A mãe, cansada de censurar a filha pelas amizades temerosas, havia largado mão e não impunha mais limites para Elisa; a garota não tinha mais horário para chegar em casa depois de ter entrado para o grupo gótico. Aquele grupo que parecia uma boa alternativa, uma válvula para refrear um certo sentimento de rejeição familiar...no começo eram afáveis e amistosos, depois a amizade foi se tornando ritual com gestos fabricados e frases desconexas. No grupo apenas sentia algo por Jean, mas não sabia se sentiria mais amor  depois de ter sido abandonada por ele e pelos amigos naquele ponto de ônibus frio como algo descartável, como uma trouxa de roupa suja.

Estela desceu do ônibus. Caminhou com esforço até sua casa. Olhou para si e para dentro de si e constatou que nada restava da garota sonhadora, que desejava apenas ser aceita não com palavras, mas com gestos, por sua família. Lembrou-se de novo da avó e do urso de pelúcia ganho quando fez dez anos - ele era tão enorme que parecia que poderia carregá-la no colo se quisesse. Batizou o urso com o nome de 'Fiel' e o tratava como um amigo, conversava com ele, afagava seu pêlo, o abraçava com sofreguidão quando queria gritar para o mundo suas aflições invisíveis para todos.

Abriu a porta de entrada  silenciosamente;  sua mãe e vó Lisa pareciam estar dormindo. Estava tão cansada que subiu para o quarto numa tentativa de dormir um pouco e depois pensar no que fazer de seu destino e sua vida. Estava decidida a largar aqueles que a largaram e retomar suas esperanças e esforços rumo a algo que valesse a pena. Sentou-se na cama, olhou para os lados. Viu Fiel no canto do quarto, quis ir abraçar o amigo de pelúcia com sofreguidão, mas o cansaço não deixou. Deitou para o lado e adormeceu. Mas em seguida acordou novamente, os pensamentos pareciam recortar sua mente tirando-lhe o sossego. Lá fora o sol já radiava desrespeitando seu sofrimento íntimo. Continuou naquela posição na cama, quando viu a porta do quarto se abrir e adentrar um vulto. Sentiu alguém sentando ao seu lado silenciosamente. Sentiu seus cabelos serem afagados de um modo diferente das outras vezes. As mãos pareciam transmitir sinceridade que geravam confiança e que geravam afeto. As mãos não pareciam se importar com o cheiro de álcool que saia de si, nem com o desalinhamento de seus cabelos, com a maquiagem exótica borrada, com a roupa negra amarrotada. Estela com muito esforço abriu os olhos e viu a mãe com um sorriso indispensável no rosto, o que a fez sentir-se dona de si como nunca havia acontecido antes.

11 comentários:

O Hospicio... disse...

OIeee marcos vi seu coments no blog.. sim eu sei que pode ser pra evitar spam mais que é chato pra caramba é né? Bom mesmo assim vou deixar sem... olha adorei seu texto... só fiquei confusa em qual blog comentar uahauahua qtos heim??!?! Bjos e espero que vc volte sempre... só num vale me corrigir nos erros de português hauhauh bjok

Marcos Vinicius Gomes disse...

Olá!

Isso é só uma pequena chatice comparada com outras (o pior são os vírus, os reais e os virtuais). Pode comentar aqui mesmo, já que se identificou mais. E, imagina se eu vou te corrigir...
Bjos.

Ninna disse...

Oláá! dando uma visitinha aqui :)
Blog de histórias? Gostei!
Estarei acompanhando.. estou te seguindo!

abraço!!

Marcos Vinicius Gomes disse...

Ninna,

Muito obrigado pela visita e volte sempre, bem vinda!

ana clara tavares disse...

...E certamente Estela foi feliz naquele momento, e em seus olhos brotaram lágrimas de dor, tristeza e ao mesmo tempo felicidade!

Acharia mágico um final feliz para Estela.

Lindo texto!

Marcos Vinicius Gomes disse...

Clara,

Esse é apenas o começo, um pouco dolorido, mas parece que ela sairá mais fortalecida...e com certeza esse é o início de um final feliz!
Obrigado pelas palavras e volte sempre!

Talita Cruz disse...

Gostei da personagem gótica. São pessoas na maioria das vezes incompreendidas. E pelo menos todos que eu conheço levam muito peso no coração, o que pode render muitos e muitos textos bons. bjss

Marcos Vinicius Gomes disse...

Talita,

concordo com você, são um dos muitos personagens de uma cidade que merecem ser narrados. Obrigado pelo comentário, abs.

Anônimo disse...

Amigo MARCOS,

Que interessante esta estoria!!

Dá para tirarmos ótimas reflexões em cima deste post.

Estela uma menina que se via abandonada, rejeitada...entregou o deserto do seu coração nas mãos de um grupo de pessoas que se diziam "amigos"...e no fim, se viu ainda mais só...e mais abandonada!

Quando chegou em casa..ela viu...que toda aquela dor de solidão, foi sanada, com o toque das mãos de sua mãe.

Ás vezes na vida, não estamos sós...não somos tão rejeitados assim...o que precisamos, é estarmos de bem conosco mesmo...e nunca deixarmos de compartilhar os nossos momentos com as pessoas que amamos profundamente!

Beijos querido!

Marcos Vinicius Gomes disse...

Paulinha,

Você disse tudo...não estamos sós. E compartilhar é muito importante, pois nos dá a noção de pertencimento, de que somos parte de pessoas que nos querem bem.

Um outro beijo para você!

Anônimo disse...

Olá, Marcos!
Em primeiro lugar, desculpa por estar escrevendo esse comentário sem ter nada haver com o post.. Se quiser excluí-lo, fique a vontade... Só queria que soubesses que deixei um presentinho pra você lá no blog. É um selo que ganhei e você o merece com todo carinho... Amo você e seu blog! Dá uma passadinha no meu blog e se aceitar... Ficarei intensamente feliz...
bjs