Lá está ela como de costume no mesmo horário de sempre. Meio-dia e meia ela sobe no ônibus, eu a observo em seu uniforme escolar - uma calça azul e uma blusa da mesma cor com a estampa 'Colégio Adventista'. Seu corpo é esguio, em tempos antigos seria chamada de sílfide, mas sua elegância não é artificial, existe harmonia entre seu rosto, seu corpo e seus gestos. Tudo nela é conforme, certamente não tem vaidade excessiva em busca de uma beleza forjada. Sua fisionomia é constantemente serena, mesmo após uma manhã cansativa de estudos, trabalhos em grupo, exames difíceis. Ela carrega em si o ar de alguém satisfeita com seus próprios méritos, sejam eles os significativos ou aqueles que trazemos conosco apenas para nossa satisfação íntima.
Ela senta no corredor oposto ao meu com sua bolsa de brim - e esta bolsa mostra um contraste no visual da estudante. Apesar de estar no colégio e de ser uma adolescente ainda, ela já apresenta traços de mulher. Seu cabelo é comprido e ela sempre o tem solto. Seu olhar é uma mistura de interesse com o que ocorre ao seu redor com o encantamento daqueles que tem muito a descobrir neste mundo de sensações difusas, cenários improváveis, cenas impensáveis e roteiros reescritos; ela está sempre atenta. Durante a viagem uma surpresa - ela saca uma goma de mascar da bolsa (que talvez a faça mais feminina do que suas colegas em suas mochilas descontraídas) e a mastiga de modo especial. Ela parece, enquanto mastiga, compenetrada em algum tema importante. Parece descordar de algum ensinamento que traga forçado consigo, possivelmente um tema abordado na aula de História, onde foi a ela ensinado que os perdedores são apenas figurantes no palco dos grandes vultos da humanidade. Sua face sugere que ela discorda desta visão maquiada da História; provavelmente ache em suas concepções juvenis que a história da humanidade não é escrita apenas pelos vitoriosos. Os oprimidos tem lugar especial em seus conceitos sobre a saga humana e isso a faz vislumbrar algo novo e esperançoso.
O ônibus adentra na periferia, os problemas são mais visíveis, as carências parecem estar estampadas em esquinas, muros, nas casas de pessoas sem rosto e sem voz. Ela continua a meu lado com uma expressão agora mais serena apesar de estar segurando firme a bolsa de brim pela alça. Já abandonou certamente os conceitos históricos, agora mais relaxada parece pensar em algo ameno, talvez no fim de semana, nas conversas com as amigas do bairro, na reunião familiar de domingo, ou pense no ócio que tanto merece após uma semana árdua de estudos. Imagino que os esforços durante a semana não foram poucos para minha amiga colegial, ela moradora de uma região esquecida por todos, inclusive pelo Estado. Tento ainda imaginar o esforço que seus pais desempenham para manter os estudos da filha, para que ela tenha um futuro melhor neste país onde a educação é um privilégio, quando deveria ser um direito. Sei que minha amiga colegial não está alheia a estas questões, certamente em suas idéias esta problemática é analisada frequentemente. Mas não neste instante. Ela continua serena, abstraída com a paisagem e com o sol da tarde de outono e faz planos para seu merecido descanso semanal. Eu, ao contrário, não posso perder mais tempo; preciso descer para uma tarde de trabalho numa escola da periferia. Desço e observo-a na janela. Vejo o rosto singelo da menina-mulher da bolsa de brim, que segue adiante, assim como a vida de itinerários incertos.
4 comentários:
Que historinha mais fofinha^^
É sim ^^
Ela me dá muita alegria
Olá, tudo bem? Faz muito tempo que não escrevo dessa forma hehe.. Até escrevia dentro desta modalidade, mas o curso de Jornalismo quer obejtividade, textos sintéticos e por ai vai.. Mas é bem bacana... Abraços, Fabio www.fabiotv.zip.net
Você tem razão. Apesar de a crônica ser uma mistura de jornalismo e literatura e é um tipo de texto que parece em vias de extinção.
Abraço
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